Meu Diário


      
  
    


Há na nossa escola grande valorização dos projetos relacionados à Semana da Consciência Negra. Inseridos em uma comunidade em que a grande maioria dos alunos é negra e norteados por Nelson Mandela, que nomeia a escola, sempre aplicamos muita energia nos projetos relacionados à essa luta. Há diversas atividades e projetos que realizamos, e cada professor conselheiro ficou responsável por desenvolver algo para ser apresentado, na sexta feira, Dia da Consciência Negra e data da culminância dos projetos. Seguindo nosso plano de ação e outras diretivas nacionais, escolhemos na edição de 2019 homenagear Carolina Maria de Jesus, uma mulher preta, pobre e catadora de lixo que utilizava cadernos e materiais que encontrava trabalhando para escrever um diário, que seria publicado depois e se tornaria grande obra da Literatura Nacional. A linguagem era simples, mas rica em detalhes e foi capaz de criar não só um relato, mas um retrato do contexto social em que vivia.

Durante a minha prática educacional, iniciada em 2018, observei que a grande maioria dos alunos e alunas eram incapazes de falar de si, descrever suas rotinas ou refletir sobre os hábitos que tinham, criando uma dificuldade estrutural: como vamos falar sobre ser alguém, sobre oportunidades de vida, sobre planos para o futuro se eles não tinham capacidade de refletir sobre sua própria realidade nem mesmo em Língua Portuguesa. Essas foram questões que nortearam muitas das atividades desenvolvidas durante todo o ano letivo de 2019.

É a partir da necessidade de observar e refletir sobre a própria realidade que surgiu a ideia deste projeto: criar um relato-retrato da vida dos nossos alunos.

Esse projeto foi desenvolvido em cinco partes, em duas turmas do 8º ano, durante o horário final das minhas aulas e em quatro semanas. Decidido o tema e ideia do projeto, iniciei com a apresentação do livro “Quarto de Despejo”, da Carolina Maria de Jesus e da sua história. Nesse momento, os alunos copiaram do quadro um trecho do primeiro capítulo da obra. Esse momento foi importante pois na nossa escola havia apenas um projetor e eu achava importante que os alunos tivessem contato com o texto escrito: longe de tentar rebuscar as palavras, a autora se expressa no texto com uma linguagem que se aproxima daquela falada na época em que escrevia. Eu escrevo já há uns anos e os meus textos são marcados pela oralidade. Nesse momento, eu já informava para os alunos que estávamos trabalhando em algo para a Semana da Consciência Negra, mas não revelei o que seria. Para algumas atividades que realizo, uso o recurso do mistério do futuro, e peço para que eles confiem que haverá um resultado no final. Essa foi uma das atividades.

No momento seguinte, iniciamos a escrita do primeiro tema do diário: “Quem sou eu?” e aqui ensinei a técnica de Escrita em Fluxo, que consiste em escrever sem parar por um tempo determinado tudo o que vier à cabeça. O terceiro momento também utilizou dessa técnica e tinha como tema “Onde eu moro/”. Aqui eu estimulava os alunos a escreverem sem pensar, criando um fluxo de pensamento e deixando os lápis e canetas correrem livremente, sem fluxo. Aqui algo interessante aconteceu. Como o desejo sempre foi que os alunos compartilhassem seus textos, alguns alunos se incomodaram de estar falando demais de si mesmos. Solucionei revelando brevemente que os alunos teriam de compartilhar seus textos com os colegas eventualmente e instruí a criação de um pseudônimo para quem não se sentisse confortável. Essa ideia solucionou o impedimento dos mais tímidos, mas a maioria dos alunos utilizaram seus próprios nomes no trabalho final.

Eu compartilhei trechos do meu próprio diário, por acreditar que esse gesto deixaria os alunos mais confortáveis em compartilhar suas próprias realidades. Os alunos escreveram em casa, no caderno, mas dois ou três alunos que já tinham o hábito de escrever utilizaram seus celulares, mas seguindo as mesmas regras. Eu passava nas carteiras e os estimulava a escrever, ao mesmo tempo que dava uma “espiada” no conteúdo que era produzido.

O terceiro momento dos diários foi, em sala, escrever todas as atividades e eventos e momentos de descanso do dia anterior, utilizando o formato de diário que Carolina Maria de Jesus apresenta em seu livro. Acredito que esse foi o momento mais difícil para os meninos e meninas, pois envolvia falar de rotina pela memória. Foi aqui que alguns alunos começaram a perceber uma repetição condicionada dos seus dia-a-dias. Aqui expliquei o que faríamos em seguida: confeccionar uma revista através da dobradura de uma folha de cartolina, de oito páginas. Os alunos teriam que 1, copiar o que já haviam escrito em seus cadernos e 2, preencher as páginas restantes com relatos de pelo menos, outros três dias. Eu expliquei ainda que criaríamos uma exposição dos diários, então eles precisavam ficar bem apresentáveis. Os alunos tiveram pouco mais de uma semana para cumprir esse último passo e entregar o diário pronto.

Por fim, no dia da culminância no formato de feira, as carteiras de uma sala foram retiradas e eu e os alunos penduramos os mais de 50 diários espalhados pela sala com uma linha de costura a partir do teto e que paravam na altura do olhar e das mãos dos visitantes: um convite à leitura. Os diários pareciam flutuar na sala de aula. Pessoalmente, gosto de pensar que pendurados ali, cada diário representava um mundo particular, uma forma de ver o mundo, um relato da realidade de alguém. Quando a gente se leu, nossos mundos e realidades tão diferentes, se misturaram.



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