Os gostos de Alan


Alan sabia que aquele não era um dia normal: acabara de assistir à uma ou duas temporadas de Lost e antes de começar a seguinte viu que aquele era um momento especial em sua vida. Todos os momentos catárticos que ele já tivera foram após o final de uma temporada de algum seriado. Não que ele fosse do tipo de cara de 60 anos perturbado e sozinho que fica até tarde da noite vendo séries sem fim. Não. Ele gostava de mistérios.

Alan cresceu lendo Agatha Christie, Sherlock e Poe e sabia como ninguém quando havia algo errado com qualquer coisa. Uma vez, por exemplo, quando estava na segunda série, descobriu que um grupo de delinquentes fazia comentários sobre seus óculos fundo de garrafa. Como era um pouco enxerido, Alan descobriu uns podres sobre as famílias dos integrantes do tal grupo e contou pra todo mundo. Ele não conseguiu melhorar a sua reputação e conseguiu alguns outros inimigos que só queriam se divertir às custas de alguém. Não que ele fosse do tipo de nerd vingativo. Não. Ele gostava era de saber os podres dos outros.

Alan ia ao mesmo bar toda quinta-feira, depois do expediente. Ele trabalhava em uma empresa de vender papéis, que na verdade vendia “produtos ilegais” mas ele não sabia que quando ele vendia 13 caixas de papel, ele vendia na verdade alguns blocos de maconha importada do Peru (porque a que vinha da Colômbia estava ficando barata demais). Quando Alan descobriu do que se tratavam os verdadeiros negócios daquela “Empresa Familiar”, ele quis sair. Não que ele fosse um cuzão. Não. Ele até gostava da adrenalina de poder ser pego.

Alan ficava sentado sempre no mesmo lugar no pátio. Ele gostava de observar os outros presos conversando e combinando estratégias de fuga com resultado certamente catastófico e que nunca sairiam do papel (ou dos desenhos na areia). Uma noite, surpreso, lhe acordaram e ofertaram um lugar no barco de fuga. Ele hesitou e como resultado, levou uma pancada na cabeça. Ele só acordou três dias depois, dentro da geladeira do IML. Acharam que o pobre coitado tinha morrido. Não que ele não queria sair da prisão. Não. Ele gostava de se imaginar no controle da própria vida.

Alan sempre saía cedo para procurar emprego e, após dois meses sem conseguir coisa nenhuma (nem com seus pais, diga-se de passagem), decidiu que seria astronauta. E como se aquela ideia não tivesse sido sugerida pelas estrelas que olhava sentado na grama da praça, imaginou como seria olhar a Terra de cima. Naquela mesma noite ele fez uma lista de todas as coisas que precisaria para ir lá em cima e começou a estudar para provas de vestibular e idiomas. Não que ele achava que seria fácil. Não. Ele gostou do desafio.

Alan estava apavorado e faltavam poucos dias para o lançamento. Ele tinha que conversar com os técnicos de vôo que lhe importunavam nos exercícios para perder a noção de onde era cima e onde era baixo, e ficar apavorado era a última coisa que ele queria ficar. Não que ele fosse medroso. Não. Ele gostava dos calafrios que lhe percorriam o corpo.

Alan olhava para foto daquela bela mulher todos os dias. Ele costumava flutuar perto da janela panorâmica e ficava as poucas horas livres que tinha com a foto na mão. Não que ele estivesse cansado de ficar olhando pra Terra todos os dias. Não. Ele gostava de imaginá-la encima dele.

Alan chorava quase todos os dias. Não que ele fosse sentimental. Não. Ele gostava de sofrer por amor.

Alan comemorou seu aniversário de 50 anos na casa de Lucas. Não que ele saísse sempre com pessoas que acabaram de entrar na história. Não. Ele, assim como você lê essa triste história, gostava de conhecer gente nova.

Alan comprou um box de DVDs da série Lost. Não que ele fosse do tipo de cara de 60 anos perturbado e sozinho que fica até tarde da noite vendo séries em DVD sem fim. Não. Ele gostava de mistérios...

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