Sobre ouvir onde estamos
Quando se fala de inovações no mundo do audiovisual sempre se consideram as câmeras e suas “potências”. Hoje um celular é capaz de gravar um vídeo com resolução 4K, quase quatro vezes mais definição do que a tecnologia FullHD. E já estão a venda os primeiros aparelhos de televisão com a tecnologia 8K. Porque dá pra ver, as mudanças no campo da imagem são percebidas com mais facilidade, mas essa percepção não é a mesma quando o assunto é som. Por precisar ser ouvido, e com tanta informação à nossa volta, não dá para parar e prestar atenção no som.
A verdade é que tem som para todo lado. Andando por uma rua, por exemplo, é quase sufocante a quantidade de sons que são emitidos e reproduzidos ao mesmo tempo. Na Avenida Paulista, por exemplo, registrou-se o som de um avião e uma moto com volume tão alto quanto o de um aspirador de pó ou um liquidificador ligados em máxima capacidade. Para quem anda alí todo dia, o silêncio é quase um sonho impossível.
Parar então para ouvir alguma coisa é estranho. Quase todos os pedestres andam no seu próprio mundo, enfurnados dentro de sua própria cabeça, ouvindo as músicas de sua preferência e alheio ao que acontece sonoramente ao exterior. O nosso mundo se tornou visual de tal forma que somos capazes de olhar para uma pessoa falando no ônibus ou no metrô sem ligar para absolutamente nada do que ela fala.
Cientes dessa capacidade humana de se isolar em seus mundos particulares, a indústria fonográfica se aproveitou e criou os primeiros aparelhos capazes de isolar o ser-humano. Antes, a música era algo que se ouvia nos clubes e bailes. Depois, cada pessoa tem na palma da mão, um rádio, que virou toca-fitas e que virou mp3-player. Hoje, os celulares que todo mundo têm estão entupidos de músicas adquiridas ilegalmente sendo ouvidas por fones de ouvido incapazes de reproduzir as músicas em sua total qualidade assumindo-se que há qualidade).
Há ainda os serviços de streaming, que trazem para os usuários grande oferta de música a partir de uma taxa mensal, paga através do cartão de crédito. Se antes havia 300 músicas em um celular comum, a oferta passou a milhares, talvez milhões de músicas distantes apenas de um toque do dedo (e da capacidade da internet do usuário). Cada vez mais, as pessoas estão sendo estimuladas a permanecer ouvindo apenas as suas músicas.
Que será que acontecerá com os artistas de rua que dependem do ouvido das pessoas, agora ocupados por alto-falantes inseridos profundamente em suas orelhas? Que será do homem da feira que grita cada vez mais alto para poder conquistar o seu cliente? E mais longe ainda: que será dos pais que não ouvem seus filhos chorando? Ou dos pedestres, que não ouvem o carro se aproximando? Ou da cozinheira que não ouve a comida pronta? Ou dos encontros casuais nos ônibus? É pagar para ouvir.